Centralidades urbanas: solução para a cidade e para a saúde das pessoas
Como instrumento legal que visa ordenar a utilização do solo urbano e direcionar o desenvolvimento de uma cidade, o Plano Diretor está repleto de termos técnicos que, em boa parte, não são de domínio do público em geral. Sancionada pelo prefeito Alexandre Kalil em agosto de 2019, a Lei Municipal nº11.181, que instituiu o novo Plano Diretor de Belo Horizonte, apresenta um desses termos com uma repetição que merece ser considerada. Afinal, a palavra “centralidade”, incluindo o plural, aparece 44 vezes na nova lei, enquanto figurava apenas nove vezes na Lei Municipal nº 7.165, de 1996, que definia o antigo ordenamento da capital.
Além da curiosidade do fato, esta repetição parece revelar uma atenção especial por parte dos gestores de Belo Horizonte com relação a um conceito que vem sendo cada vez mais valorizado no planejamento das cidades: o das centralidades urbanas. Este é um recurso importante, que pode fazer toda a diferença no desenvolvimento de um município no que diz respeito à qualidade ambiental do lugar e à qualidade de vida da população, incluindo neste aspecto a saúde das pessoas.
Solução pra os grandes deslocamentos
De acordo com o arquiteto e urbanista Gregório Fiorotti, uma centralidade urbana pode ser entendida como uma área da cidade com grande concentração de usos, fácil acesso e maior significado simbólico. Esta não é nenhuma novidade pelo ponto de vista do desenvolvimento dos municípios que, historicamente, cresceram a partir de algum tipo de atrativo central. “Toda cidade se desenvolve a partir de uma centralidade original. Pode ser a matriz da igreja, uma estação de trem, um posto de comércio. Com o crescimento da cidade, o acesso a esta centralidade se torna mais dispendioso, seja pela distância das novas ocupações, pelo alto valor do solo ou pela falta de espaço. Novas centralidades possibilitam que os habitantes trabalhem, socializem, façam compras e se divirtam em locais mais próximos de suas moradias, diminuindo o ônus financeiro, social e psicológico de se viver em uma cidade”, diz o urbanista.
Para Gregório, incentivar novas centralidades e valorizar as existentes é um ótimo jeito de se tornar a cidade melhor para seus habitantes. “O tempo de trânsito diminui, enquanto o tempo para as demais atividades cresce, novos polos comerciais surgem. Com essa atenção, a cidade se torna mais rica e interessante”, considera.
Faz bem para a saúde
Até mesmo para situações de pandemia como a que estamos atravessando, várias centralidades urbanas distribuídas pela cidade podem ser mais interessantes pelo ponto de vista da proteção da população diante de um vírus do que o modelo que adota um grande centro comercial. Em artigo publicado pela Universidade de Campinas (Unicamp), os professores Gabriela Celani e Sidney Piocchi, do curso de Arquitetura e Urbanismo da FEC-Unicamp, e Wilson Ribeiro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC/Campinas, corroboram essa ideia.
Para os professores, o modelo de urbanização no qual o comércio e os serviços se concentram no centro da cidade, enquanto áreas estritamente residenciais são posicionadas na periferia, acaba acelerando a dispersão dos vírus. “Pessoas de todas as partes da cidade precisam circular diariamente pelo mesmo local, onde trabalham, estudam, vão ao médico e fazem compras. Linhas de transporte coletivo, comércio, equipamentos públicos e até mesmo edifícios de escritório não sobrevivem em regiões de baixa densidade, porque precisam de um grande volume de usuários para se tornarem economicamente viáveis, e por isso eles, tendem a se instalar nos centros consolidados. Mas, em cidades em que o uso misto e a densidade habitacional são estimulados em todo o território, esses equipamentos podem sobreviver de maneira distribuída, criando múltiplas centralidades com certa autonomia”, eles dizem.
No artigo, os professores destacam o estudo Understanding the role of urban design in disease spreading (Compreendendo o papel do desenho urbano na propagação de doenças), publicado recentemente no repositório de artigos acadêmicos Biorxiv, que explica como a dispersão de um vírus se torna mais lenta em cidades que contam com várias centralidades, o que estaria associado ao fato de os moradores não precisarem frequentar os mesmos lugares por onde os habitantes de toda a cidade circulam. “Consequentemente, eles também não utilizam os mesmos ônibus e a maioria deles, provavelmente, sequer depende de transporte público, pois pode ir a pé ou de bicicleta para o trabalho, a escola, a unidade básica de saúde ou o centro de comércio local. Ao reduzirmos a necessidade de deslocamentos longos, não apenas reduzimos a circulação dos vírus, como também fortalecemos as comunidades e as economias locais. São também reforçadas as relações de vizinhança, algo extremamente importante ao lidarmos com situações como a que estamos vivendo atualmente, na qual as pessoas mais vulneráveis, como os idosos, podem precisar da ajuda de seus vizinhos, e as entregas de produtos vindos das redondezas são muito mais seguras e eficientes”, consideram.
O uso de transporte alternativo, como bicicletas, por exemplo, que é favorecido pelos curtos deslocamentos que as centralidades impõem, também pode trazer uma contribuição adicional para a saúde da população. “Nas múltiplas centralidades, o uso de meios de transporte ativos, como a caminhada e as bicicletas, próprias ou compartilhadas, é viável e bem-vindo em tempos de epidemias, pois evita a necessidade de aglomeração no transporte coletivo e ainda contribui para a redução de comorbidades, como a obesidade, a pressão alta e a diabetes, três agravantes para os pacientes contaminados com a Covid-19. As doenças respiratórias, outro importante fator de risco, costumam ser causadas ou agravadas pela poluição do ar, a qual resulta, em boa parte, do excesso de automóveis presentes nas grandes cidades”, destacam os professores.
Fortalecendo o local
Para que as centralidades urbanas se fortaleçam e consigam cumprir suas finalidades, é essencial que o cidadão se posicione favoravelmente à ideia, prestigiando os negócios locais. “Em uma época em que a internet nos oferece a comodidade das compras sem ter que sair de casa, ela nos afasta do comércio local, criado na nossa vizinhança. Portanto, precisamos nos posicionar diante disso, privilegiando o que está perto, sempre que possível”, diz Carlos Alberto Rocha, presidente da Amoran.
De acordo com Carlos Alberto, só com esse pensamento a situação local poderá se desenvolver. “Precisamos agir de forma favorável a este desenvolvimento e esta ação pode vir de uma forma simples. Basta prestigiar os negócios da nossa vizinhança”, conclui.