Saúde & Qualidade de Vida

Movimentos antivacina: tão perigosos quanto os vírus mais perigosos

Você permitiria que alguém lhe desse uma injeção contendo pus extraído da ferida de uma pessoa doente? É bastante provável que a sua resposta seja um sonoro “não”, o que é bastante compreensível. Afinal, além de ser repugnante, a ideia sugere o risco quase certo de a doença ser transmitida para você, o que ninguém em perfeito juízo gostaria que acontecesse. Contudo, foi a partir de uma ideia assim que, no final do século 18, o médico inglês Edward Jenner descobriu a vacina contra a varíola, uma das doenças mais severas que já atacou a humanidade.

Ordenhando vacas

Para chegar à descoberta, em 1789, Jenner passou a observar as pessoas que trabalhavam na ordenha de vacas, que, segundo uma crença popular, eram imunes à varíola humana. De fato, o médico notou que quem já havia sido infectado pela versão bovina da doença, que se manifestava de maneira mais branda, não contraía a forma humana. A partir daí ele imaginou o experimento que levaria à vacina.

Em 1796, o médico extraiu o pus da ferida de uma mulher contaminada pela varíola bovina e inoculou a secreção em um garoto saudável. O menino adoeceu, mas sem gravidade, e rapidamente se curou. Dois meses mais tarde, o médico repetiu a operação com o mesmo garoto, que não apresentou nenhum sintoma. Ele estava imunizado.

Nascia ali a vacina de combate a uma doença que, por milhares de anos, assolou a humanidade e causou estragos consideráveis. Entre 1524 e 1525, por exemplo, estima-se que um terço da civilização Asteca tenha sido dizimada pela varíola, que, naquela época, foi introduzida nas Américas pelos espanhóis.

Outros epidemias importantes de varíola aconteceram no mundo todo, inclusive aqui no Brasil. Em uma delas, inclusive, surgiu um movimento antivacina genuinamente nacional, que, no início do século 20, causou grande tumulto no Rio de Janeiro.

A Revolta da Vacina

No Brasil, uma lei de 1837  tornou obrigatória a vacinação de crianças contra a varíola, se estendendo para adultos em 1846. Entretanto, como não havia produção em escala industrial e muitas pessoas não aceitavam receber uma vacina produzida com pus e que era cercada por boatos — diziam que quem se vacinava acabava ficando com cara de boi —  a lei acabou não surtindo efeito prático.

Somente em 1904, quando uma epidemia de varíola levou milhares de pessoas infectadas aos hospitais do Rio de Janeiro, houve uma tentativa de retomada da vacinação obrigatória contra a doença no país. Por força de uma nova lei, quem não se vacinasse perderia uma série de direitos — como o de obter contratos de trabalho, certidões de casamento, autorização para viagens ou fazer matrículas em escolas, entre outros.

Com a população já insatisfeita com a conjuntura da época e resistente à vacinação, a rigidez da lei serviu como um estopim, fazendo explodir uma série de protestos nas ruas do Rio que, então, era a capital federal. Os tumultos, que incluíram uma rebelião militar, rapidamente evoluíram, até se transformarem na famosa Revolta da Vacina, que entrou para a história do Brasil. Como resultado das duas semanas de absoluta confusão na cidade, foram feitas 945 prisões, 461 revoltosos foram deportados, 110 saíram feridos e 30 morreram.

O conflito só teve fim quando o presidente Rodrigues Alves aceitou retroceder e revogou a vacinação obrigatória. Curiosamente, quatro anos mais tarde, quando surgiu novo surto de varíola no Rio  muito mais grave do que o anterior, no lugar da rejeição, voluntariamente a população buscou se vacinar.

O mundo contra a vacina

A resistência da população contra a vacinação é um fenômeno mundial, que se manifesta em ondas e que varia em intensidade ao longo do tempo. O surto que estamos experimentando atualmente teve como um dos motivos prováveis um artigo publicado em 1998 pelo médico inglês Andrew Wakefield, que, na revista médica Lancet, associou a ocorrência do autismo com a vacina tríplice viral — contra sarampo, rubéola e caxumba. Mais tarde, uma investigação descobriu que as alegações de Wakefield eram falsas e tinham como motivo  verdadeiro a propina que ele recebia de advogados envolvidos com processos relacionados a danos vacinais.

Mesmo com o resultado da investigação amplamente divulgado e a despeito do desmentido público feito pela Lancet, a desconfiança contra a vacinação se propagou. A este episódio somaram-se questões religiosas, falsas alegações científicas e mirabolantes teorias da conspiração — como a que diz que Bill Gates usou sua fortuna para investir em vacinas com o objetivo de reduzir a população mundial. Tudo isso levou ao agravamento da resistência contra a imunização de crianças e de adultos.

Como consequência, a redução na imunização da população está permitindo que doenças que apresentavam baixa incidência ou que já haviam sido erradicadas — como no caso do sarampo — voltem a se manifestar de maneira preocupante. E a resistência não para de crescer, prejudicando seriamente a adesão às campanhas de vacinação. Aqui no Brasil, por exemplo, de acordo com o Ministério da Saúde, até o último dia 7 de setembro, a cobertura vacinal ainda não havia atingido a metade da população infantil do país.

Desinformação

No ano passado, a OMS incluiu o movimento antivacina entre as dez maiores ameaças à saúde pública global. Como colocam em risco o progresso obtido no combate a doenças evitáveis por vacinação, a Organização classifica tais movimentos como sendo tão preocupantes quanto os vírus mais perigosos que afetam a humanidade.

A OMS entende que existe um conjunto complexo de motivos que levam as pessoas a não se vacinarem — que incluem crenças religiosas, dificuldade de acesso às vacinas e desconfiança. Entretanto, a desinformação também tem figurado como um importante fator que induz à chamada “hesitação vacinal”, termo utilizado pelas autoridades de saúde pública para designar o atraso na aceitação ou a recusa em receber a vacina.

A professora de Direito Ana Santos Rutschman, que monitora o Centro de Estudos de Direito da Saúde da Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, destaca que as redes sociais têm servido para disseminar informações negativas contra as vacinas. Segundo a professora, o desserviço, inclusive, seria realizado até mesmo por bots, que são programas de computador utilizados por pessoas e por organizações interessadas na disseminação de informações falsas que simulam a ação humana na internet.

“Um estudo da Royal Society for Public Health, no Reino Unido, descobriu que 41% dos pais que usam as redes sociais relataram ter encontrado ‘mensagens negativas’ relacionadas à vacinação. O número aumentou para 50% entre os pais de crianças menores de 5 anos”, diz a professora em artigo publicado no site The Conversation.

Felizmente, as plataformas de redes sociais — como o Facebook e o Twitter — atuam para combater as publicações enganosas. Entretanto, como o volume de desinformação é imenso, o senso crítico também deve figurar como uma arma adicional e indispensável contra a disseminação de ideias deturpadas que contrariam o conhecimento científico e vão contra a necessidade de vacinação maciça da população.

Vale lembrar que, mesmo com a vacina criada por Edward Jenner, a erradicação global da varíola só ocorreu em 1977 e foi reconhecida pela OMS em 1980. Ou seja, quase dois séculos depois de iniciada a vacinação contra a doença.

Talvez, se não houvesse tantos episódios como o da Revolta da Vacina, um resultado tão desejado como este poderia ter sido antecipado em algumas décadas.

 

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