Pandemia ou sindemia? O conceito que melhor se aplica à Covid-19 e os desafios sociais que ele apresenta.
Enquanto na Europa uma segunda onda de contágios pelo SARS-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, já obriga as autoridades a retomarem medidas mais drásticas de isolamento e no momento em que no Brasil emendamos o primeiro surto com o segundo, na Coreia do Sul já se fala em uma terceira onda de contaminação pelo novo coronavírus. No inusitado, portanto, são percebidos sinais de que temos muito ainda que aprender sobre a doença, inclusive na forma de denomina-la. Mas do que isso, devemos considerar os fatores paralelos que a acompanham agora, mas que já existiam antes de a Covid-19 mudar o mundo.
Em 11 de março, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que o estado de contaminação pelo SARS-CoV-2 configurava uma pandemia. Contudo, a partir de um maior entendimento sobre o surto, uma parcela da comunidade científica passou a classifica-lo como uma sindemia. Mas, qual a diferença entre os dois conceitos e quais desafios esta diferença implica?
Sinergia de pandemias
O termo sindemia é um neologismo criado nos anos 1990 pelo médico e antropólogo americano Merril Singer como uma maneira de definir a situação que ocorre quando “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças”. Em entrevista à BBC, Singer explicou que o impacto dessa interação é facilitado por condições sociais e ambientais que deixam a população mais vulnerável a ele.
O conceito foi elaborado como resultado de uma pesquisa sobre o uso de drogas em comunidades de baixa renda, que levou Singer e sua equipe a perceberem que a dependência química interagia com outras doenças que são mais comuns na população mais pobre — como a tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis. Os pesquisadores então notam, que os danos causados pelas drogas eram potencializados pelas doenças que já faziam parte daquele grupo social anteriormente.
O mesmo raciocínio foi transportado para a atual pandemia. “Vemos como (a Covid-19) interage com uma variedade de condições pré-existentes e vemos uma taxa desproporcional de resultados adversos em comunidades desfavorecidas, de baixa renda e de minorias étnicas”, explica Singer.
Tradicionalmente, o termo era usado para definir a ação de grupos de doenças em nível individualizado. Contudo, em 2019, a Comissão Lancet, da revista científica The Lancet, ampliou o conceito ao relacionar as mudanças climáticas aos problemas alimentares globais da desnutrição e da obesidade. Atualmente, com a percepção de que questões sociais de saúde pública que já eram problemáticas antes da pandemia se tornaram ainda mais graves com a Covid-19, o termo vem sendo reforçado de maneira dramática.
Vulnerabilidade social
De acordo com a engenheira de biossistemas Tiff-Annie Kenny, o SARS-CoV-2 tem apresentado riscos especiais para populações marginalizadas e em situação de vulnerabilidade social. Pesquisadora da Universidade de Laval, no Canadá, Tiff-Annie destaca o exemplo da Nação Navajo, dos Estados Unidos, que já convivia com problemas de saúde e com deficiências sanitárias, incluindo a fatal de água corrente, anteriores à pandemia, e que está sendo afetada de maneira especial pelo surto de Covid-19.
Diante de casos como o dos Navajos, a cientista entende que uma sindemia não exige apenas a gestão de cada aflição. Também é preciso dedicar esforços na abordagem das forças subjacentes que os unem, notando a desigualdade social como a principal delas. “No Canadá, vimos alguma semelhança dessa abordagem nas estratégias de resposta de emergência da Covid-19 direcionadas a apoiar pessoas que vivenciam a situação de falta de moradia e violência e bancos de alimentos e organizações locais de alimentos”, diz Tiff-Annie.
Desastre em câmera lenta
A pesquisadora entende que a maior parte das questões sociais e de saúde que agora estão sendo destacadas pela pandemia já se apresentavam de forma preocupante no passado. “Mas esses problemas costumavam ser de longo prazo. Por exemplo, as taxas de doenças não transmissíveis – aquelas não são transmitidas diretamente de uma pessoa a outra, como diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares – aumentaram durante décadas no que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou de ‘desastre em câmera lenta’. No entanto, emergências imediatas são tratadas primeiro, enquanto os problemas de longo prazo esperam”, considera.
De acordo com Tiff-Annie, as condições de vida nas comunidades indígenas são inadequadas há muito tempo, persistindo a falta de acesso à água potável e a crise habitacional . “Então, por que os governos estão respondendo apenas agora? Essas questões não poderiam ter sido respondidas mais cedo? Na verdade, muito mais dinheiro é gasto respondendo a crises de saúde do que prevenindo-as”, avalia.
Atenção para todos, sem exceção
Segundo a OMS, a fim de que se faça uma preparação adequada, é preciso haver abordagens consistentes de todos os riscos, de surtos de doenças infecciosas a eventos climáticos extremos e mudanças climáticas. “As epidemias, na verdade, foram apenas um dos 13 desafios urgentes à saúde global identificados para a próxima década pela OMS em janeiro”, destaca Tiff-Annie.
Na opinião da pesquisadora, a Covid-19 deixa claro é que preciso haver “abordagem de todas as pessoas” e que ninguém fique para trás , observando-se nesse sentido todos os fatores sociais e as condições de saúde que se agrupam em torno dos mais vulneráveis, não permitindo que eles sejam ignorados nos tempos de normalidade e apareçam em primeiro plano somente durante uma pandemia. “Pensar na Covid-19 por meio de lentes sindêmicas ajuda a chamar a atenção para o fato de que essas crises não diminuíram e não são ruídos de fundo. Em vez disso, eles são combinados para formar um cenário desafiador no qual a pandemia agora ocupa o centro do palco. As questões de saúde e sociais que se concentram nas populações desfavorecidas e/ou de natureza crônica e de longo prazo simplesmente não podem esperar mais”, conclui.