Afinal, a preocupação com a transmissão da Covid-19 por superfícies continua sendo válida?
Há um ano, quando a pandemia estava no início e não tínhamos tanta informação sobre o vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19, a limpeza de superfícies — inclusive de correspondências e de embalagens de alimentos — se tornou quase obsessiva para as pessoas que, logo de cara, entenderam que estavam diante de uma doença mortal altamente transmissível. Alinhada com esta mesma percepção, também vimos pelo mundo todo os esforços do poder público para higienizar calçadas, estações de ônibus e de metrô e outros locais de grande circulação de público, temendo que o contágio pelas superfícies fosse algo extremamente relevante.
Entretanto, será que toda esta preocupação continua válida?
Em certa medida, sim. Mas, não tanto.
Para o epidemiologista Hassan Vally, professor da Universidade de La Trobe, na Austrália, em certa medida, é quase certo que uma superfície possa servir como meio de transmissão do vírus de uma pessoa a outra. Contudo, a prioridade deve ser entender qual a probabilidade de alguém contrair a Covid-19 em contato com uma superfície contaminada, se comparada a outros mecanismos de contágio.
Segundo Vally, são poucas as evidências de que este seja um meio comum de disseminação do coronavírus. “A principal forma de propagação é pelo ar, seja por gotículas maiores por meio de contato próximo, ou por gotículas menores chamadas aerossóis. Como uma observação lateral, o papel relativo que essas duas rotas desempenham na transmissão é provavelmente uma questão muito mais interessante e importante para esclarecer sob a perspectiva de saúde pública”, considera.
Na opinião do epidemiologista, um dos melhores comentários sobre a transmissão da Covid por superfície foi publicado pelo professor de microbiologia Emanuel Goldman, dos Estados Unidos, na revista Lancet Infectious Diseases, julho do ano passado. “Como ele descreveu, um dos motivadores para a percepção exagerada do risco de transmissão de superfície foi a publicação de uma série de estudos mostrando que as partículas virais da SARS-CoV-2 podiam ser detectadas por longos períodos em várias superfícies”, lembra Vally.
Quantidade de vírus
De fato, os estudos que identificaram a sobrevida do vírus em superfícies receberam grande publicidade em todo o mundo e também foram motivo de atenção do epidemiologista. “Como expliquei na época , esses estudos não podiam ser generalizados para o mundo real e, em alguns casos, os comunicados à mídia que os acompanhavam tendiam a exagerar a importância dessas descobertas”, considera.
Vally destaca que quanto mais vírus estiverem sobre uma determinada, mais tempo eles sobreviverão ali. “Portanto, em termos de planejamento de experimentos relevantes para a saúde pública, as variáveis mais importantes nesses estudos são a quantidade de vírus depositada em uma superfície e até que ponto isso se aproxima do que aconteceria no mundo real”, explica.
Segundo Vally, aparentemente, muitos dos estudos de sobrevivência de vírus aumentaram as chances de detectá-los, depositando nas superfícies quantidades do microrganismo muito superiores ao que seria razoável encontrar na realidade. “Além disso, alguns desses estudos personalizaram condições que estenderiam a vida das partículas virais, como ajustar a umidade e excluir a luz natural”, destaca.
Vally entende que não houve nada de errado com os experimentos, a não ser a relevância dos resultados para a vida real. “É notável que outros estudos que replicaram mais de perto os cenários do mundo real encontraram tempos de sobrevivência menos impressionantes para três outros coronavírus humanos”, observa.
Concentrando no que interessa
Contudo, Vally salienta que essa avaliação não deve levar à falsa impressão de que as superfícies não representam uma ameaça real como meio de transmissão da Covid. “Porém, devemos reconhecer que as representações da transmissão por superfície são relativamente pequenas. Precisamos colocar em perspectiva os riscos de exposição ao SARS-CoV-2 por meio dos vários modos de transmissão, para que concentremos nossa energia e recursos limitados nas coisas certas. Podemos, portanto, mitigar esse risco relativamente pequeno, continuando a nos concentrar na higiene das mãos e garantindo que os protocolos de limpeza estejam mais de acordo com o risco de transmissão superficial”, avalia.
Em outras palavras, as conclusões de Vally não significam que as pessoas devam baixar a guarda, deixando de cumprir com os protocolos de higiene já adotados e com os quais se acostumaram. Entretanto, em vez de se preocuparem tanto com medidas exageradas, é mais proveitoso dedicar mais atenção ao uso do álcool, à lavação frequente das mãos, ao uso de máscara e ao distanciamento social.