Cidadania

Para historiadora de Harvard, polarização ideológica e interferência política colocam em risco a autonomia científica

Ciência e política sempre se relacionaram. Contudo, nos últimos anos, esse relacionamento tem sido mais intenso e polarizado em torno de posicionamentos ideológicos, o que ameaça a autonomia científica. Esta conclusão é da pós-doutra em História da Ciência Liv Grjebine, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que se dedica a estudar as interações da ciência com a sociedade, desde o século 19 até a atualidade.

Médicos sob suspeita

Em artigo publicado no The Conversation, Liv lembra o comentário de um de seus alunos sobre a dúvidas que muitas pessoas têm quanto à confiança que podem depositar nos médicos, uma vez que, assim como os políticos, muitos profissionais de saúde também estão politizando a pandemia. Para ela, de fato, as interações entre ciência e política agora chegaram a níveis bastante complexos, o que vem obscurecendo as informações e causando incerteza sobre em quem podemos confiar.

Porém, de acordo com a historiadora, ao contrário do que muitas pessoas presumem, a objetividade da ciência não exige que ela seja isolada da política governamental. “Os cientistas sempre se envolveram na política como conselheiros e na formação da opinião pública. E a própria ciência — como os cientistas são financiados e como eles escolhem suas prioridades de pesquisa — é uma questão política”, considera.

De acordo com Liv, a pandemia vem mostrando os benefícios e os riscos dessa relação, que vão das controvérsias em  torno da  hidroxicloroquina à união de esforços da Operação Warp Speed, que permitiu o desenvolvimento de vacinas em menos de um ano. “Nesse contexto, é compreensível que muitas pessoas tenham começado a duvidar se deveriam confiar na ciência. Como historiadora da ciência, sei que a questão não é se a ciência e a política devem estar envolvidas. Já estão. Em vez disso, é importante que as pessoas entendam como essa relação pode produzir resultados bons ou ruins para o progresso científico e para a sociedade”, destaca.

A relação histórica da ciência e da política

Segundo Liv, historicamente, as demandas políticas sempre atuaram como chaves de aceleração da ciência. Por outro lado, necessidades de mesma ordem às vezes também sufocaram o progresso científico. “Os objetivos geopolíticos orientam grande parte da pesquisa científica. Por exemplo, o programa espacial Apollo, de 1961 a 1972, foi impulsionado mais pela competição entre superpotências na Guerra Fria do que pela ciência. Nesse caso, o financiamento do governo contribuiu para o progresso científico”, recorda.

Na direção oposta, a historiadora observa que o envolvimento do governo na biologia teve um efeito sufocante sobre a ciência nos primeiros anos da União Soviética. “Trofim Lysenko foi um biólogo de Stalin que denunciou a genética moderna. Quando ele se tornou chefe de instituições científicas importantes, seus oponentes foram presos ou executados. Apesar de ser totalmente errado,  o “lysenkoísmo” tornou-se a ortodoxia aceita nas academias e universidades da Europa comunista até meados da década de 1960. Como demonstra a história de Lysenko, quando os poderes políticos decidem as questões nas quais os cientistas devem trabalhar — e, mais importante, que tipo de respostas a ciência deve encontrar — isso pode prejudicar tanto o progresso científico quanto a sociedade”, diz Liv.

Dois partidos, duas ciências

Liv observa que a relação entre ciência e política sempre foi dinâmica, mas as mídias sociais operaram uma transformação importante na maneira como esse relacionamento acontece atualmente. “Como é mais difícil discernir entre conteúdo verdadeiro e falso online, agora é mais fácil do que nunca espalhar notícias falsas com motivação política”, ela diz.

Para Liv, as redes sociais aceleraram a divisão política que, há bastante tempo, vinha minando a confiança na ciência. A historiadora considera que, desde Ronald Reagan, os líderes republicanos já haviam transformado a ciência em um campo partidário. “Os legisladores republicanos frequentemente ignoram as questões ambientais, apesar do consenso científico sobre as causas e os efeitos perigosos a que essas questões levam”, avalia.

Contudo, a doutora acredita que Trump tenha elevado a suspeita que recai sobre a ciência a outro patamar, passando a trata-la essencialmente como uma questão de opinião política. “Ele argumentou que os cientistas e instituições que contradiziam seus pontos de vista eram motivados por suas agendas políticas e, por extensão, que a própria ciência era falsa . Em contraste, o presidente Biden colocou a ciência no topo de suas prioridades”, analisa.

Live percebe que a divisão entre as posições científicas e anticientíficas frequentemente está associada a posicionamentos partidários . “Pessoas com diferentes visões políticas, mesmo quando têm alguma formação, às vezes não são capazes de concordar sobre os fatos. Por exemplo, entre os cidadãos americanos com alto nível de conhecimento científico, 89% dos democratas dizem que a atividade humana contribui muito para as mudanças climáticas, em comparação com apenas 17% dos republicanos. Os democratas também não estão imunes a isso, como pode ser visto pelo forte apoio democrata à rotulagem de alimentos geneticamente modificados, apesar do consenso científico sobre a segurança desses alimentos . Mas, no geral, os republicanos tendem a ser muito mais anticientíficos do que os democratas”, acredita Liv.

Riscos cotidianos

A historiadora alerta para graves riscos que a divisão política cria, o que temos testemunhado durante a pandemia. “Pessoas que se identificam como republicanas têm muito mais probabilidade de serem resistentes ao uso de máscaras e à vacinação”, observa.

Liv considera que discordâncias na ciência são necessárias para o progresso científico . “Mas, se cada parte tem sua própria definição de ciência, as verdades científicas se tornam uma questão de opinião, em vez de fatos objetivos de como o mundo funciona”, ela diz.

Autonomia ameaçada

A doutora lembra que, considerando que a confiança na ciência ficou bastante abalada durante o governo Trump, importantes revistas científicas acabaram apoiando abertamente a candidatura de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos. “Talvez, esta tenha sido a primeira vez na história em que um número tão grande de publicações científicas tomou posições claras para a eleição presidencial dos EUA”, avalia.

Por tudo o que vem acontecendo no campo da política, Liv entende que o fato de a aceitação ou a rejeição da ciência ser cada vez mais determinado por posicionamentos ideológicos cria uma grande ameaça para a autonomia dos cientistas. Afinal, enquanto uma teoria for classificada como “conservadora” ou “progressista”, com medo das pressões políticas e sociais, fica difícil para os cientistas apresentarem alguma contestação.

Na opinião de Liv, a ciência não pode prosperar sob governos que ignoram a perícia científica como um todo, mas também não pode prosperar se os cientistas ouvirem quais valores políticos e morais eles devem abraçar, o que pode retardar ou mesmo impedir o surgimento de novas hipóteses científicas. “Na verdade, quando os cientistas se alinham a favaor ou contra o poder político, a ciência pode facilmente perder seu ativo mais importante: a capacidade de encorajar desacordos e levantar novas hipóteses que podem ir contra o bom senso”, conclui.

 

Uma dica

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