De uma padaria da antiga Pompeia, uma reflexão de felicidade para tempos de pandemia
A felicidade humana é notadamente resistente. Esta foi uma das principais lições que os pesquisadores responsáveis pela elaboração do Relatório Mundial da Felicidade 2021 obtiveram após entrevistarem 100 mil pessoas em 95 países em 2020. A avaliação considerou temas relacionados ao apoio social que os entrevistados recebem, ao rendimento, à qualidade e expectativa de vida, à liberdade, à generosidade e à existência ou não de corrupção no lugar onde vivem.
Por incrível que pareça, mesmo com a pandemia, o índice de felicidade manteve-se mundialmente estável no ano passado, com relação a 2019. Seguida de perto pela Dinamarca e pela Suíça, pelo quarto ano consecutivo, a Finlândia figurou em primeiro lugar no ranking da felicidade, marcando 7,889 pontos, em uma escala de 0 a 10.
Destoando da média mundial, o Brasil amarga uma 41ª colocação, com pontuação 6,11, a pior desde o início da apuração em 2005. A melhor pontuação já alcançada pelo país foi 7,14, anotada em 2013. O país mais infeliz do mundo entre os pesquisados foi o Zimbabwe, que marcou apenas 3,299 pontos.
Porém, considerando a situação global, os pesquisadores perceberam que a resiliência prevaleceu, contribuindo para que grande parte das pessoas não piorasse a sensação de felicidade, mesmo diante de todas as dificuldades que estamos enfrentando.
Inscrição de padaria
Hic habitat felicitas (Aqui mora a felicidade) diz a inscrição encontrada em uma padaria de Pompeia, a cidade romana que foi arrasada pela erupção do Vesúvio, em 79 dC, que serviu como ponto de partida para que a professora de História Nadejda Willians, da Universidade de West Virgínia, nos Estados Unidos, fizesse uma análise sobre a felicidade no The Conversation.
Nadejda destaca que Felicitas e Fortuna, duas deusas próximas em atributos, eram veneradas em Roma com a expectativa de que alguma intervenção das divindades favorecesse a vida dos seguidores. Portanto, a professora entende que, ao associar a felicidade (“felicitas”) ao próprio estabelecimento, afirmando que ali era a sua morada, o padeiro de Pompéia talvez estivesse manifestando o desejo de atrair as bênçãos para seu negócio e para sua vida.
A acadêmica explica ainda que a felicidade também era associada ao dinheiro e ao poder, aparecendo, inclusive, em cunhagens de moedas. “Mas, além dessa visão do dinheiro e do poder como fonte de felicidade, havia uma ironia cruel. Felicitas e Felix eram nomes comumente usados para escravos femininos e masculinos. Por exemplo, Antonius Felix , o governador da Judéia no primeiro século, era um ex-escravo, enquanto Felicitas era o nome da mulher escravizada que ficou famosa ao ser martirizada junto Perpétua em 203 dC”, revela.
Mas, onde, de fato, mora a felicidade?
“Na sociedade de hoje, a felicidade pode existir apenas às custas de outra pessoa? Onde fica a felicidade, à medida que as taxas de depressão e outras doenças mentais aumentam e os dias de trabalho aumentam?”, questiona Nadejda.
Pesquisas revelam que, nas últimas duas décadas, os trabalhadores americanos aumentaram a carga de trabalho. Uma pesquisa Gallup de 2020 descobriu que 44% dos funcionários em tempo integral trabalhavam mais de 45 horas por semana, enquanto 17% das pessoas trabalhavam 60 ou mais horas semanais.
“O resultado dessa cultura sobrecarregada é que felicidade e sucesso realmente parecem ser uma equação de soma zero. Há um custo, geralmente humano, com o trabalho e a família jogando cabo-de-guerra por tempo e atenção, e com felicidade pessoal sendo sempre sacrificada. Isso era verdade muito antes da pandemia”, destaca a professora.
Mais atenção à felicidade nos tempos de crise
Segundo Nadejda, os estudos sobre a felicidade parecem se tornar mais populares durante os períodos de alto estresse social. “Talvez não seja coincidência que o estudo mais antigo sobre a felicidade, administrado pela Universidade de Harvard, tenha se originado durante a Grande Depressão. Em 1938, os pesquisadores mediram a saúde física e mental de 268 alunos do segundo ano e, durante 80 anos, acompanharam esses homens e alguns de seus descendentes”, ela conta.
De acordo com a acadêmica, os resultados revelaram que relacionamentos próximos, mais do que dinheiro ou fama, mantêm as pessoas felizes por toda a vida. “Isso inclui um casamento e uma família felizes e uma comunidade próxima de amigos que o apoiam. É importante ressaltar que os relacionamentos destacados no estudo são aqueles baseados no amor, cuidado e igualdade, ao invés de abuso e exploração”, explica.
A professora observa que, assim como a Grande Depressão motivou o estudo de Harvard, a atual pandemia inspirou o cientista social Arthur Brooks a lançar, em abril de 2020, uma coluna semanal sobre felicidade intitulada How to Build a Life (Como Construir uma Vida). “Em seu primeiro artigo para a série, Brooks faz pesquisas mostrando que fé e trabalho significativo, além de relacionamentos próximos, podem aumentar a felicidade.
Feliz mesmo no caos e na desordem
De acordo com Nadejda, o conselho de Brooks se correlaciona com as descobertas no Relatório Mundial de Felicidade de 2021 , que observou um aumento de cerca de 10% no número de pessoas que disseram estar preocupadas ou tristes no dia anterior. “Fé, relacionamentos e trabalho significativo contribuem para a sensação de segurança e estabilidade. Todos eles foram vítimas da pandemia. O padeiro de Pompeia, que escolheu colocar a placa em seu local de trabalho, provavelmente teria concordado sobre a conexão significativa entre felicidade, trabalho e fé. E, embora ele não estivesse, pelo que os historiadores podem dizer, passando por uma pandemia, ele não era estranho ao estresse social”, considera.
Para a professora, é possível que a escolha da inscrição refletisse uma corrente de ansiedade que é compreensível, tendo em vista a turbulência política em Pompéia e no império em geral nos últimos 20 anos de existência da cidade. “Na época da erupção vulcânica, sabemos que alguns pompeianos ainda estavam reconstruindo e restaurando os danos do terremoto de 62 dC . A vida do padeiro deve ter sido repleta de lembretes de instabilidade e desastre iminente. Talvez a placa tenha sido uma tentativa de combater esses medos”, acredita.
Sonhos e aspirações
Diante disso, Nadedja julga interessante questionar se as pessoas verdadeiramente felizes sentiriam a necessidade de colocar uma placa proclamando a presença da felicidade em seu lar. “Ou talvez eu esteja analisando demais este objeto, e era simplesmente uma bugiganga feita em massa. Uma versão do primeiro século de um cartaz de ‘Lar Doce Lar’ ou ‘Viva, Ria, Ame’, que o padeiro ou sua esposa pegaram em um capricho”, ela brinca.
De qualquer forma, a inscrição lembra uma verdade importante: as pessoas na antiguidade tinham sonhos e aspirações à felicidade, assim como temos hoje. “O Vesúvio pode ter acabado com os sonhos de nosso padeiro, mas a pandemia não precisa ter um impacto tão permanente sobre os nossos. E, embora o estresse do último ano e meio possa parecer insuportável, não houve melhor momento para reavaliar as prioridades e lembrar de colocar as pessoas e os relacionamentos em primeiro lugar”, sugere Nadedja.